Hoje o YouTube me sugeriu um vídeo no qual Anish Giri entrevista Garry Kasparov, em especial abordando a questão se Kasparov era o mais fraco quando enfrentou Karpov em 1984.
Giri foi muito respeitoso e cuidadoso ao formular a pergunta, de modo a não soar como ofensivo, e Kasparov deu uma resposta muito técnica e impessoal, tocando nos pontos centrais da questão e revelando uma compreensão extraordinária da situação, como nenhum outro comentarista ou autor havia apresentado antes, exceto em meu livro de 2022, no qual explico o mesmo que Kasparov descreveu nesse vídeo. A diferença é que Kasparov “intuiu” essa interpretação, enquanto eu expliquei cientificamente e quantitativamente.
O gráfico a seguir, extraído da página 142 de meu livro, ajuda a compreender melhor o que Kasparov disse:
A visão geral naquela época era de que Karpov era mais velho, por isso foi ficando cansando e caindo de performance ao longo do match. Entretando, se observarmos o gráfico, no qual estão representados os níveis de jogo em cada uma das 48 partidas do match (Kasparov azul, Karpov vermelho), podemos perceber que aquela interpretação foi equivocada. A qualidade dos lances de Karpov desde a primeira partida até a última, mostra uma qualidade praticamente igual, tal como Kasparov interpretou. Há até um leve indício de que a qualidade do jogo de Karpov aumentou um pouco ao longo do match.
A linha pontilhada vermelha representa a regressão linear da evolução na qualidade de jogo do Karpov, enquanto a pontilhada azul representa a evolução do Kasparov. A linha vermelha está quase paralela ao eixo das abcissas, começando em 2850 e terminando em 2877.
Além disso, a qualidade de jogo do Kasparov foi melhorando um pouco ao longo do match, justamente como ele interpretou. Kasparov começou em 2818 e terminou em 2951, descontando as flutuações, obviamente, e considerando o parâmetro de inclinação da reta de regressão. Portanto ambos melhoraram ao longo do match, porém Kasparov melhorou muito mais.
Outro detalhe ainda mais sutil e mais difícil de notar, mas que Kasparov também notou, foi que a amplitude de oscilação na qualidade do jogo dele foi mais larga do que no jogo do Karpov, e foi exatamente o que aconteceu, conforme podemos observar nas curvas contínuas, nas quais a amplitude para baixo e para cima é maior na linha azul do que na vermelha. Esse mesmo efeito também pode ser inferido quando olhamos para a dispersão dos pontos, que é mais larga entre losangos azuis do que entre os quadrados vermelhos.
Kasparov chegou a jogar em nível acima de 3040 em 4 partidas, enquanto Karpov só uma vez. Além disso, Kasparov chegou a jogar 6 vezes com nível abaixo de 2650, enquanto Karpov nenhuma vez. Esse detalhe explica porquê, embora Kasparov tenha jogado a maior parte do match acima do nível de Karpov, ele estava perdendo o match quando foi interrompido. O “problema” foi porque quando Karpov caía até certo nível, não chegava a um nível baixo o suficiente para que Kasparov pudesse vencer, mas quando Kasparov caía de qualidade de jogo, era suficiente para perder. Esse detalhe Kasparov aparentemente não compreendeu, ou pelo menos ele não expressou nos comentários que fez durante a entrevista.
Kasparov percebeu também outro detalhe interessante extra-tabuleiro, quando ele diz que Karpov jogou mal na partida 47 (que é justamente o ponto vermelho mais baixo no gráfico acima), e chama a atenção para o fato de que Karpov também deveria ter perdido na partida 6 (que é justamente o segundo ponto vermelho mais baixo no gráfico acima), e ele destaca que se Karpov tivesse perdido na partida 6, os comentaristas criticariam “Karpov jogou mal, levou todas as peças para a ala da Dama...”, deixando claro o efeito ad hoc que influi nas opiniões dos comentaristas de Xadrez (assim como nas dos comentaristas de investimentos e outros).
Em meu livro de 2022, cerca de 1 ano antes dessa entrevista de Kasparov, aponto e analiso precisamente os mesmos detalhes que ele citou, além de alguns outros detalhes que ele não citou. Também analiso outros matches polêmicos, como Fischer—Larsen, Fischer—Taimanov, Lasker—Schlechter, Steinitz—Chigorin, bem como alguns torneios polêmicos, como Linares 1994 e AVRO 1938. Além dos matches e torneios, há diversos outros conteúdos sobre os ratings históricos desde o ano 1465, corrigidos pela inflação, há uma lista com os 2022 melhores jogadores de todos os tempos, ordenados por 3 critérios diferentes: força absoluta, por força relativa aos jogadores de suas épocas com inflação corrigida, e sem inflação corrigida. Há análises de outros métodos para cálculo de rating, apontando pontos fracos e fortes nesses outros métodos, há diversas curiosidades, e principalmente há a apresentação de novos métodos para cálculo de rating, um dos quais permite calcular a força de jogo com base em apenas 1 partida, ou com base no fragmento de uma partida.
Perto do final da entrevista, Giri faz uma pergunta que sugere que ele não entendeu o que o Kasparov havia explicado, e questiona se era errada a narrativa de que Kasparov não aprendeu ao longo do match.
Um detalhe a se considerar quando Kasparov afirma que Karpov foi constante, na verdade nenhum deles foi constante. O mais correto seria dizer que Karpov foi comparativamente mais constante, já que ambos oscilaram ao longo match, mas a amplitude de oscilação na qualidade de jogo foi mais estreita no caso do Karpov.
Um aprendizado a se extrair dessa entrevista é que quando um entrevistador faz uma pergunta “nociva”, não importa quão boa seja a resposta, a pergunta acaba causando algum dano. Nesse caso, provavelmente muitos espectadores interpretaram que Kasparov era de fato mais fraco, como sugeriu Giri, e não quis admitir, por isso “inventou” toda aquela história e deu todas aquelas voltas, quando na verdade foram explicações estritamente técnicas e imparciais, corroboradas por fatos numéricos, conforme mostro em meu livro. O problema é que não existem outros métodos, além do meu, para extrair esses números e fazer essa análise quantitativa. O sistema ELO, assim como os outros mais recentes, só permitem calcular a qualidade de jogo com base em blocos de partidas, mas não com base em partidas individuais. O método de Ivan Bratko tem a intenção de ser aplicado a jogos individuais, porém a incerteza é muito grande e o erro sistemático é ainda maior. Esse erro sistemático deve-se à indeterminação do parâmetro de discriminação de dificuldade.
Em linhas gerais, achei bastante surpreendente o nível de compreensão que Kasparov teve sobre o desenvolvimento do match, sem utilizar dados estatísticos apropriados. Tudo com base na percepção subjetiva, que é extraordinariamente realista, inclusive em detalhes finos. Essa característica é particularmente notável quando se compara a compreensão dele com as de outros jogadores daquela época e os atuais, que não perceberam sequer 20% dos aspectos que ele compreendeu claramente, inclusive jogadores da elite mundial, e mesmo depois das explicações dele, creio que maioria continuou sem compreender o que ele disse.
Também convém notar que a pergunta de Giri sobre “Kasparov ser mais fraco” incorre em outros erros, porque no início do match Kasparov tinha 2710 de rating contra 2700 de Karpov, sendo que Karpov já estava com seu rating razoavelmente bem estabelecido, enquanto Kasparov estava com seu rating em crescimento, portanto “desatualizado”, porque as atualizações eram semestrais, ou seja, a força de Kasparov era maior do que o rating dele, enquanto a força de Karpov era bem representada por seu respectivo rating. Isso pode ser inferido pelas idades e pode ser também verificado quando consideramos as evoluções dos ratings:
O match começou em 10/9/1984 e foi interrompido após a partida de 8/2/1985. Portanto com base na evolução de longo prazo do rating FIDE, com atualizações semestrais, Kasparov estava subindo e estava mais forte do que Karpov desde o início, e foi aumentando a diferença, enquanto Karpov permaneceu aproximadamente estável, com pequena queda. Com base no modelo de curto prazo com ratings calculados a partir de jogos individuais, é conforme comentei anteriormente. Nos dois casos, Kasparov cresceu enquanto Karpov permaneceu oscilando aproximadamente no mesmo patamar.
Portanto não havia fundamento para a suposição de Giri. O que Giri poderia ter questionado com melhor fundamento é se o fato de Karpov ser mais experiente em matches poderia ter pesado no início, e conforme Kasparov foi adquirindo maior experiência nesse formato de competição, foi melhorando seus resultados. Outro questionamento válido seria sobre os aspectos psicológicos, como Kasparov comentou, que ele não deveria tentar “encontrar os melhores lances possíveis”, mas sim tentar “vencer seu oponente”, explorando as debilidades dele.
Essa opinião de que é melhor jogar contra o oponente do que jogar procurar os melhores lances é especulativa. Lasker alegava fazer isso, e funcionou algumas vezes, mas não outras, e quando funcionou foi porque ele era objetivamente mais forte, não por ter usado esse “truque”. Depois que Lasker venceu Steinitz, ele declarou “o jogador venceu o cientista”, porém quando Lasker foi vencido por Capablanca, ficou claro que jogar objetivamente os melhores lances pode ser mais eficaz, dependendo da situação. A verdade é que o jogador não venceu o cientista, mas sim o jovem jogador venceu o velho cientista, e depois o velho jogador perdeu para o jovem cientista, e anos mais tarde o velhor e bem treinado jogador voltou a alcançar e superar o jovem e destreinado cientista em rating, mas não chegaram a jogar um match.
Esse “truque” de jogar contra o oponente voltou a ser praticado quando os programas para PC começaram a chegar a níveis altos, cerca de 2500 de rating, na segunda metade dos ano 1990. Alguns jogadores desenvolveram métodos eficazes para empatar, para vencer e até para vencer oferecendo vantagem aos programas, embora não fossem tão fortes quanto os programas. O MI Hélder Câmara tinha uma estratégia para empatar contra programas acima de 2550, embora ele tivesse 2300. Eu cheguei a desenvolver um método para vencer oferecendo um Cavalo de vantagem, contra programas com 2200. E isso continua ocorrendo atualmente. Programas com 3700 podem oferecer 1 Cavalo de vantagem contra programas com 2500 e vencem a maioria, porém não conseguem vencer a maioria oferecendo 1 Cavalo para humanos com 2200, justamente porque os humanos jogam “diferente”, para simplificar, trocar peças, em vez de jogar os melhores lances.
Veja as duas partidas comentadas:
Veja também:
https://www.youtube.com/@hindemburgmelao