No livro “Como a mente funciona”, Steven Pinker apresenta o chamado paradoxo de Wallace, uma questão fundamental na teoria da evolução. Alfred Russel Wallace, que desenvolveu a teoria da seleção natural independentemente de Charles Darwin — com quem mantinha correspondência —, tornou-se criacionista, de acordo com Pinker. Apesar da afinidade intelectual com Darwin e da contribuição revolucionária à biologia, Wallace acreditava que a mente humana era complexa demais para ser explicada apenas pela seleção natural.
Wallace observou que os povos coletores de alimentos — chamados de "selvagens" na época — possuíam cérebros do mesmo tamanho que os dos europeus modernos e podiam adaptar-se facilmente às exigências intelectuais da vida moderna. Contudo, o modo de vida dos ancestrais evolutivos desses povos não exigia tal nível de inteligência, que ele considerava desnecessário para a sobrevivência. Wallace escreveu:
"Nossa lei, nosso governo e nossa ciência continuamente exigem que raciocinemos por entre uma variedade de fenômenos complexos até o resultado esperado. Até mesmo nossos jogos, como o xadrez, obrigam-nos a exercitar em um grau notável todas essas faculdades. Compare isso às línguas selvagens, que não contêm palavras para conceitos abstratos, à absoluta falta de antevisão do homem selvagem além de suas necessidades mais simples, à sua incapacidade para combinar, comparar ou raciocinar sobre qualquer assunto geral que não apele imediatamente aos seus sentidos."
Ele também destacou que um cérebro com apenas uma vez e meia o tamanho do cérebro do gorila seria suficiente para as necessidades mentais do homem selvagem. Assim, admitir que o vasto cérebro humano se desenvolveu exclusivamente por seleção natural, cuja essência é a adaptação funcional às necessidades da espécie, torna-se problemático. Afinal, a seleção natural poderia apenas dotar o homem selvagem com um cérebro um pouco maior que o de um macaco, mas na realidade o cérebro humano é incomensuravelmente mais complexo, “pouquíssimo inferior ao de um filósofo”.
O paradoxo de Wallace — a aparente inutilidade evolutiva do excesso de inteligência humana — é um problema central da psicologia, da biologia e da visão científica do mundo. Mesmo hoje, cientistas como o astrônomo Paul Davies reconhecem que o "excesso" de inteligência humana desafia o darwinismo estrito e demandam a existência de algum outro agente ou processo, talvez um mecanismo auto-organizador que ainda será explicado pela teoria da complexidade.
Essa hipótese é quase tão insatisfatória quanto a ideia original de Wallace sobre uma inteligência superior, guiando o desenvolvimento humano em uma direção definida. Essa questão não pode ser ignorada e exige que estejamos abertos a novas abordagens e reflexões.
Nesse debate, vale mencionar a proposta de Stephen Jay Gould, que sugeriu que muitas capacidades humanas — como o cálculo, a leitura ou o xadrez — são exemplos de exaptação, isto é, traços que não evoluíram diretamente para essas funções específicas, mas foram redirecionados posteriormente para finalidades inéditas. Steven Pinker adere a essa ideia, mas reconhece que isso se baseia mais em uma postura de crença do que numa prova incontestável. Ele admite:
“Concordo com Gould em que o cérebro foi exaptado para novidades como o cálculo ou o xadrez, mas isso é apenas uma confissão de fé de pessoas como nós que acreditam na seleção natural; praticamente não pode deixar de ser verdade.”
Ou seja, sua discordância com Wallace não se dá por ter eliminado todas as dúvidas, mas por confiar na robustez geral da teoria darwinista, mesmo diante de lacunas. Para Pinker, o erro de Wallace foi subestimar a complexidade cognitiva envolvida na sobrevivência de caçadores-coletores, presumindo erroneamente que a vida ancestral não exigia raciocínio sofisticado. Ao contrário, Pinker argumenta que a inteligência moderna é uma ampliação natural das pressões adaptativas primitivas — não um excesso sem causa, mas uma consequência evolutiva reaproveitada.
Hindemburg aponta também alguns erros na análise de Wallace. Em primeiro lugar, ele não tinha um conceito adequado para “inteligência”. Em segundo lugar, a maioria dos humanos médios é intelectualmente mais semelhante a um gorila do que a um grande filósofo. A linguagem gera a falsa impressão de grande superioridade, mas quando colocados para lidar com questões estritamente racionais envolvendo elementos com mesmo nível de familiaridade tanto para humanos quanto para gorilas ou chimpanzés, percebe-se que a desvantagem real do chimpanzé é menor do que se costuma imaginar, e em muitas habilidades cognitivas simples o chimpanzé supera os humanos, como velocidade de reflexos e memória de curto prazo. Em alguns problemas mecânicos e logísticos, como empilhar caixas para alcançar bananas, também não ficam muito atrás de humanos. Ainda há muito preconceito com a inteligência animal, que permanece sendo subestimada e mal compreendida. Alguns exemplos marcantes são os casos do chimpanzé Ayumu, muito superior aos humanos em teste de memória de curto prazo para números. O cavalo Hans, discutido detalhadamente no volume I do Guia dos apodícticos, que é capaz de análise extremamente complexas de padrões de comportamento e fisionômicos que a maioria dos humanos não consegue nem mediante treinamento especializado. Numa conversa recente com o GPT, questionei se cavalos sentiam inveja, e ele disse que não. Depois de prolongar um pouco o assunto, o GPT mudou de ideia e reconheceu que sim, embora a literatura vigente diga o contrário. O GPT reconheceu, mediante as evidências e apresentei, que cavalos são muito mais inteligentes do que se pensa. Primeiro citei o caso dos gorilas que dissimulam não terem comida para não compartilhar com colegas recém chegados. Ele concordou, mas disse que gorilas eram mais evoluídos que cavalos. Então eu o relembrei sobre o cavalo Hans, e ele concordou que as habilidades de Hans indicam um nível muito acima do necessário para desenvolver sentimentos complexos como “inveja”. Na época de Wallace, meados do século XIX, o nível de preconceito contra animais era MUITO maior, por isso as subestimativas eram mais abismais. Dizia-se que “humanos são animais racionais”, como se os outros animais não fossem.
Outro ponto que precisa ser considerado é que na época que Wallace fez essa afirmação (~1892), não se sabia a idade da Terra. As principais estimativas da época eram de Lorde Kelvin (400 milhões de anos) e do amigo de Darwin Thomas Huxley (100 milhões de anos). Nos anos 1890, Simon Newcomb e Clarence King estimaram em 18 milhões e 24 milhões de anos, usando métodos diferentes. Newcomb se baseou no tempo necessário para que a nebulosa de Laplace se contraísse até formar o Sol e King estimou com base no tempo necessário para sedimentação em bacias da América do Norte. O segundo filho de Darwin, George, também havia feito sua estimativa em 56 milhões de anos com base no atrito produzido pelas marés lunares, aplicado à duração da rotação primordial da Terra, que ele calculou por um método muito engenhoso. Wallace fez suas próprias estimativas com base na espessura de estratos e taxas de sedimentação em estudos europeus, chegando a 28 milhões de anos.
O problema é que Huxley já havia estimado que 100 milhões de anos era pouco para explicar a diversidade observada, e outros cientistas compartilhavam essa opinião. Portanto 28 milhões era consensualmente muito pouco. Entretanto, hoje sabemos (ou acreditamos saber) que a idade da Terra é cerca de 4,54 bilhões de anos, e a vida surgiu há 3,8 bilhões anos. Isso significa que uma parte importante da objeção de Wallace foi baseada numa informação errada, que era aceita como correta na época.
Enfim, Wallace não sabia direito o que é “inteligência” e confundia com cultura. A ideia que ele tinha sobre isso não era clara e apresentava falhas e confusões graves. Além disso, havia preconceitos contra animais que o levaram a formular um pseudo paradoxo. Para piorar mais, a idade da Terra era subestimada por um fator 200.
A ciência está em constante evolução e busca explicar fenômenos que ainda não compreendemos completamente. Muitas vezes, quando esses fenômenos fogem à explicação atual, acabam sendo rotulados como "esotéricos". No entanto, é essa abertura para questionar que impulsiona o avanço do conhecimento.
Como algo tão complexo quanto a vida poderia ser plenamente explicado por uma única teoria? Em muitos vídeos do canal e também em seus livros, Hindemburg defende que a teoria da seleção natural é uma ferramenta poderosa, que explica diversas características dos seres vivos, mas está longe de ser uma resposta definitiva. Assim como a teoria de Newton foi útil por séculos, mas acabou sendo aprimorada por Einstein, a seleção natural é apenas uma entre várias peças do quebra-cabeça. Grandes teorias científicas, como o próprio modelo do Big Bang, também passam por reformulações constantes e enfrentam lacunas significativas. A ciência é um organismo vivo, em revisão permanente — e nenhuma explicação, por mais elegante que pareça, deve ser tomada como absoluta.
No debate sobre as origens da inteligência humana, é importante reconhecer que a seleção natural, ainda que seja a melhor teoria científica para explicar a variedade de animais, vegetais e outros organismos vivos, ainda enfrenta algumas dificuldades para explicar todas as complexidades da mente de forma conclusiva. Existem aspectos da evolução cognitiva que permanecem obscuros, e é legítimo investigar alternativas.
Um desafio frequente nas discussões sobre ciência e crença é o viés interpretativo. Muitas pessoas partem de crenças pré-estabelecidas e procuram seletivamente por evidências que as confirmem. Não é assim que se faz ciência séria, não é assim que se constrói conhecimento sólido.
Uma abordagem mais produtiva consiste em analisar os fatos antes de formar opiniões — um “pós-conceito” dinâmico que se aprimora à medida que novas informações surgem. Essa postura evita julgamentos precipitados e permite uma revisão contínua das interpretações, mantendo melhor conformidade com o método científico.
Dessa forma, a inteligência humana, com sua complexidade singular, não pode ser plenamente explicada pela seleção natural tal como é atualmente compreendida. O paradoxo de Wallace e as reflexões contemporâneas indicam a necessidade de explorar além das explicações convencionais, mantendo a mente aberta para novas descobertas que possam lançar luz sobre a origem e a natureza da mente humana.
O convite aqui é que explore os conteúdos além das crenças, não como um devaneio anticientífico, mas como um imperativo intelectual diante dos limites da ciência. Por mais que os avanços científicos tenham transformado o mundo, a verdade é que, quando o assunto é a mente humana — sua origem, sua complexidade, seu aparente “excesso” —, as explicações permanecem incompletas, e em muitos pontos, profundamente insatisfatórias. A ciência, até hoje, não conseguiu demonstrar de forma conclusiva como processos evolutivos adaptativos resultariam em capacidades para lidar com entidades tão abstratas e processos tão refinados quanto os que estão presentes na matemática, a linguagem simbólica ou no senso de transcendência. Reconhecer isso não é negar a ciência, mas justamente levá-la a sério: é entender que, onde há lacunas, deve haver questionamento — e não acomodação.
Por isso, pensar a realidade — em todas as suas dimensões, da mente ao cosmos — exige mais do que repetir fórmulas prontas: exige lucidez, coragem e método. E é exatamente isso que propõe o Guia dos Apodícticos. Em vez de oferecer dogmas ou truques retóricos, o livro convida o leitor a enfrentar as grandes questões com profundidade e honestidade, munido de argumentos rigorosos, exemplos instigantes e um olhar verdadeiramente crítico. Quem deseja compreender o universo e tudo o que ele encerra — da matéria à consciência, da lógica à existência —, e não apenas ecoar o que já se afirma sobre ele, encontrará nesse guia uma das mais sólidas e ousadas tentativas já escritas de pensar com autenticidade — e entender por que a ciência, por si só, ainda não basta.